Ex-delegado explica o surgimento
do crime organizado no Brasil
Relato
feito por Sérgio Guerra, ex-delegado da época, que demonstra o cenário que
acompanhou o surgimento do crime organizado no Brasil (instaurado com o
desmantelamento do Regime Militar):
O início da marginalidade: Polícia, exército, empresários, banqueiros,
fazendeiros, políticos, contraventores, etc.
A Delegacia
de Roubos e Furtos e o DOPS, da Polícia Civil, tinham as
melhores equipes para atuar no combate à esquerda, pelo conhecimento adquirido
com investigação e espionagem de crimes comuns. Embora não estivessem
hierarquicamente submetidos aos comandos militares, os dois organismos
policiais acabaram sendo grandes fornecedores de quadros para o auxílio aos
militares na repressão.
A
comunidade de informações, no acirramento da guerra [...] estendeu seus braços
também à contravenção - o jogo do bicho. Usava deste
artifício fora da legalidade, aceito pela sociedade civil, para obter
informações, arrecadar fundos e transitar na clandestinidade.
Somada à
estrutura e aos instrumentos que advinham do aparato estatal, essa comunidade
de informações contava ainda com apoio financeiro de alguns grandes empresários
brasileiros.
[...]
Também participavam dessas reuniões pessoas da área de informação da Vale,
dos Correios e Telégrafos, da Universidade Federal, que davam
apoio à repressão.
Mensalmente,
eu e o secretário de Segurança do Espírito Santo íamos para o Rio de
Janeiro participar das reuniões similares no 1º Batalhão da Polícia do
Exército, na rua Barão de Mesquita. Esse local ficou conhecido mundialmente
como importante centro de tortura e eliminação de combatentes esquerdistas.
Paralelamente
ao nosso grupo, funcionava [...] no Rio de Janeiro, no prédio da Polícia
Federal, a sede de uma outra rede de informações [...], comandada pelo delegado
Cláudio Barrouin Mello. [...] Era ele quem desviava as investigações
dos atentados que pudessem ser atribuídos aos militares.
Em São
Paulo, o líder da comunidade foi durante muito tempo o delegado Fleury,
do DOPS, que também comandava o aparelho de tortura da rua Tutoia. [...] A eficiência
de Fleury para ajudar os militares a dizimar a esquerda era tanta que ele
acabou ficando mais forte que todo o aparato oficial da comunidade em São
Paulo. [...] os militares não tinham experiência para combater a esquerda
armada. Quem tinha éramos nós, que sabíamos investigar, fazer campana, tocaiar
e matar. Nós, policiais civis. [...] Fomos provavelmente os
dois delegados dessa época que mais matamos, tanto bandidos comuns quanto
comunistas.
Em nome
da segurança do Estado brasileiro, os membros da comunidade de informações
podiam tudo: perseguir, grampear, investigar, julgar, condenar, interrogar,
torturar, matar, desaparecer com o corpo [...] Tudo era permitido.
Quando
foi preso, muito antes, ele peitou todo mundo e disse: "Olha, seu eu cair,
cai todo mundo. Vou falar de todos e de tudo que aconteceu." Depois dessas
ameaças, os militares arrumaram uma lei do dia para a noite. Ela foi
criada para beneficiar o criminoso, e está em vigor até hoje [Lei 5941/73, que
ficou conhecida como "Lei Fleury"].
No final
dos anos 1970, Fleury tinha se tornado um homem rico, desviando
dinheiro dos empresários para sustentar ações clandestinas
do regime militar.
No regime
militar havia muito cassino clandestino. Bateli, ligado aos
bicheiros Castor de Andrade, do Rio, e Ivo Noal, de São Paulo, sempre estava
por trás deles.
Castor de Andrade (1926-1997) foi um dos mais poderosos bicheiros do
Brasil. Transitava com desembaraço e prestígio pelo poder. No governo
militar, diversos generais lhe dedicaram atenção especial. Era amigo de João
Havelange, então presidente da Fifa, e do poderoso Boni,
superintendente-geral da TV Globo, amizade que se estreitou em torno da Liga
das Escolas de Samba do Rio de Janeiro.
Ivo Noal,
desde sempre ligado ao jogo do bicho, foi um dos que mais arrecadaram
para as operações clandestinas do delegado Fleury.
Eu estava
no Rio e passei a integrar o esquadrão de ouro da Scuderie Le Cocq.
Essa irmandade se alastrou por São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e
Minas Gerais. O coronel Perdigão pertencia a ela, e Sivuca [Guilherme
Godinho Ferreira, delegado], que depois virou deputado, era um de
seus membros mais conhecidos, tendo sido eleito usando o lema da associação:
"Bandido bom é bandido morto".
[...] O
grupo tinha tentáculos em setores influentes da sociedade -
políticos, juízes, delegados -, que se uniam para tornar impunes
suas ações [...]. O discurso ideológico de combate ao crime e a
articulação entre os membros da Scuderie colocavam-nos acima das leis, e tudo
era permitido.
[...] Os
recursos que viabilizavam o pagamento da equipe de operações clandestinas
vinham dos empresários que, em troca, eram beneficiados pelo
regime militar. Dinheiro nunca faltava.
Eram dois
os bancos que apoiavam nossas operações: O Mercantil de São Paulo
e o Sudameris. [...] O dono do Mercantil era Gastão Eduardo Vidigal, mentor,
arrecadador e financiador das nossas operações clandestinas.
O deputado
capixaba Camilo Cola, dono da Viação Itapemirim, foi um grande apoiador das
nossas ações clandestinas. [...] Muito próximo do coronel Perdigão, ele arrecadava
recursos entre grandes empresas, como a Gasbrás e a White
Martins, e levava em mãos para o coronel. Camilo Cola sempre contou com os
préstimos do coronel Perdigão e do comandante Vieira. No início dos anos 1980
[...] ele procurou Perdigão para resolver um problema. [...] Eu estava meio
acomodado, ganhando um bom dinheiro com o jogo do bicho. [...]
Perdigão escalou uma equipe mista, com gente do Rio e de Minas, para dar um
fim no jornalista. José Roberto Jeveaux havia patrocinado um livro sobre
mim, O cana dura, redigido por Pedro Maia [...] Outro caso envolvendo
Perdigão foi o assassinato de um político nordestino [...] Foi depois de
1985. Também um crime de mando, mas sem relação com Camilo Cola. O empresário,
como arrecadador e financiador da repressão, recebia benefícios do regime
militar. Ganhou várias concessões e sua empresa cresceu
muito no período. Com o fim da ditadura, ele absorveu, na Viação
Itapemirim, vários agentes que combateram a esquerda no Brasil. [...]
Os donos
do Mappin [...] sempre ajudaram a combater a esquerda em São Paulo.
[...] ele me procurou novamente. Veio falar do Mappin, que já estava com
problemas de insolvência. Os donos, Alberto e Cosette Alvez, queriam que a
comunidade ajudasse, pois a questão envolvia empresas [...] abertas no
exterior [...]. Eles tinham medo de perder os bens; queriam passar tudo para
o nome de terceiros. [...] No tempo dos militares, eles financiavam as
operações de Fleury. [...] Diziam-se amigos do presidente Figueiredo,
frequentador de seu iate e de seu helicóptero. Isso foi na segunda metade dos
anos 80.
[...]
também recebi 50 submetralhadoras, ainda nas caixas, estalando de novas,
com o carimbo do Exército. Deveriam ser distribuídas para os
fazendeiros de direita. [...] depois fui condenado a quatro anos de prisão
por causa dessa operação. Foi no início dos anos 90, quando a jornalista Maria
Nilce foi assassinada [...] descobri tudo, inclusive o envolvimento de
famílias capixabas poderosas, e me enredei numa confusão. [...] Fiquei
preso vários dias, até que chegou um indulto e fui solto.
Os
coronéis queriam provocar mortes em conflitos de terra e gerar ambiente
de insegurança que prejudicasse a abertura política. O plano era provocar
derramamento de sangue, e culpar a esquerda.
A abertura democrática
Do final
da década de 1970 até meados dos anos 1980, toda a estrutura montada para
combater os nossos adversários começou a ser descontruída.
[...] Acostumados
ao poder, grupos de oficiais das Forças Armadas, de policiais federais e
civis resolveram agir por conta própria fora da cadeia de comando. Financiado
por empresários e pela contravenção, que se beneficiavam de
vantagens [...]
[...] Meu
grupo era formado por policiais civis, muitos ainda na ativa,
como Ricardo Wilke, que pertencia ao DGIE.
[Ricardo
Wilke foi investigado na CPI do Narcotráfico da Câmara dos
Deputados em 2000 e chegou a ser preso logo após seu depoimento no Rio de
Janeiro]
Mais
tarde, no Espírito Santo, numa propriedade em Cariacica [...] eu preparava
policiais para o Grupo de Operações Especiais da polícia civil - GOE
-, uma tropa de elite para combater o crime criada no governo Max Mauro.
[...]
Esses meus companheiros se envolveriam depois numa ação policial famosa e
polêmica com a Falange Vermelha. [...] A Falange, a primeira organização
criminosa do Rio, que se transformou depois no Comando Vermelho,
aprendeu a luta armada urbana com os presos políticos, na Ilha Grande. Vejam
como as coisas foram se misturando com o tempo!
O
processo de abertura política lenta e gradual implantado pelo general Ernesto
Geisel acabou gerando desconforto nas nossas bases. [...] o que fazer com
as dezenas de operadores que serviram ao estado durante os anos de repressão?
A anistia
ampla e irrestrita nos absolveu sumariamente dos crimes praticados, mas como
o nosso grupo passaria a sobreviver? Nós, que éramos
proprietários de uma enorme quantidade de armamentos e conhecedores de tantos
segredos?
Alguns,
que se escondiam sob falsas identidades, acabaram incorporadas à própria
máquina governamental. Viraram servidores públicos. Outros
tiveram sorte diferente. É nesse contexto que o pessoal responsável pelas
operações mais perigosas foi absorvido em outras organizações, a maioria
relacionada à contravenção.
A
decadência dos aparelhos de combate ao comunismo coincide com o crescimento
de organizações criminosas ligadas ao tráfico de drogas, à formação de milícias
e principalmente ao jogo do bicho. O know-how conquistado
com o aparato do Estado agora serviria ao submundo do crime organizado.
[...] a
maneira encontrada para me bancar nesse novo contexto foi viabilizar a minha
entrada no jogo. O coronel Perdigão me levou para o esquema. Fui
apresentado a Castor de Andrade, que era o chefe dos bicheiros, o mais
importante de todos. [...] A relação entre Castor e as forças armadas era
tão próxima que ele tinha até uma credencial do Cenimar. Ele gostava de
usá-la para dizer que era agente, oficial da reserva. Ele era atrevido. Mas
existia, de fato, colaboração entre o SNI e o jogo.
Quando o
regime abriu, mesmo depois que acabou o SNI, continuei a ajudar clandestinamente
as polícias de São Paulo e do Rio [...]
Os anos
1980 já iam adiantados e o nosso poder, clandestino - e, ao mesmo tempo, aqui e
ali, oficial -, ia se esvaindo. [...] A comunidade de informações vinha
sendo desmantelada e nós, a ponta operacional, aquela que era envolvida
por uma aura de comentários temerosos, começávamos a procurar nossos
próprios caminhos.
O tenente
Odilon Carlos de Souza [...] foi mandado pelo Exército para o Espírito Santo,
sob a orientação do SNI, para, entre outras missões, executar o contraventor
Jonhatas Bulamarques, que estava pedindo favores e chantageando coronéis do
Exército.
Passei
vários anos na cadeia por conta do assassinato de Bulamarques [...] fiquei
quieto todos esses anos em nome da minha fidelidade ao regime militar.
[...]
[...] O
trabalho de escolta que prestávamos para as autoridades militares na época do
regime militar passou a ser feito para particulares por meio dessa empresa.
Boa parte
do financiamento da nossa irmandade nessa época vinha do jogo,
mas não só dele: havia a colaboração de muitos empresários
simpáticos ao tipo de serviço que nós oferecíamos. Nessa época, então,
arrecadar recursos com os empresários era uma tarefa exclusiva do Perdigão e do
Vieira. Fomos financiados por esse esquema durante muitos anos, mesmo após a
redemocratização. Só deixei de receber da comunidade quando já estava preso
em Vila Velha (ES), entre 1995 e 1996.
[...]
Acabou a revolução, mas a irmandade continuou. A irmandade ainda existe [...]
os caras ainda servem uns aos outros. Eu continuei, continuou todo
mundo.
Trechos
do livro “Memórias de uma Guerra Suja”, 2012, editora TopBooks.