terça-feira, 25 de outubro de 2011

A ideia de justiça no mundo contemporâneo de Joaquim Carlos SALGADO

SALGADO, Joaquim Carlos. A ideia de justiça no mundo contemporâneo: fundamentação e aplicação do direito como maximum ético. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.

http://books.google.com.br/books?id=2pz6OEwYKaEC&printsec=frontcover&dq=justi%C3%A7a&hl=pt-BR&ei=0x9sTr_ME4S2twe0x6TlBQ&sa=X&oi=book_result&ct=book-preview-link&resnum=9&ved=0CFYQuwUwCA#v=onepage&q=justi%C3%A7a&f=true

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A justiça é aqui entendida como uma idéia; idéia, porém, concebida na processualidade histórica, portanto como a racionalidade (inteligibilidade ou idealidade) imanente do direito positivo que se processa no tempo histórico, no qual se pode, por indução teórica dessa processualidade, destacar três momentos mais significativos, nos quais os diferentes projetos de ordenação social justa dialeticamente se realizam a partir dessa mesma realidade: α) o período clássico, da Metafísica do Objeto, em que o valor configurador da justiça é a igualdade e que, para efeitos de um estudo de Filosofia do Direito, dirigido ao tema da justiça como idéia, vai de Thales de Mileto a Santo Tomás de Aquino, compreendendo o desenvolvimento de três culturas: a cultura grega, a cultura romana e a cultura cristã, que assume a cultura pagã, greco-romana;[1] β) o moderno,
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o da Filosofia do Sujeito, em que se insere na idéia de justiça o valor da liberdade como conteúdo da igualdade (de Descartes a Kant); e χ) o contemporâneo, o da Metafísica Especulativa, em que o valor trabalho, juntamente com a igualdade e a liberdade, aparece dimensionando a ideia de justiça no plano social, sem deixar de ser a realização do bem jurídico de cada um, isto é, da pessoa, o destinatário em que a justiça tem realidade, mesmo se se trata da denominada justiça social, caracterizada pela prestação (dever) de fazer do Estado (de Hegel em diante). A ideia de justiça nesse momento realiza esses três valores, a igualdade, a liberdade e o trabalho, na forma dos direitos fundamentais: como consciência (saber) da juridicidade desses valores (universal abstrato); como declaração (querer) desses valores como direitos, por ato de disposição empírica (particular) na constituição; como efetivação desse direito na forma de fruição pelo sujeito de direito (universo concreto).
Ainda que se não tenha chegado a uma universalidade homogênea de repúblicas puras, a que se refere Kant, a uma paz perpétua, o mundo atual é o mundo em que se dá a consciência universal desses direitos e do Estado que os declara, em vigor na maioria dos Estados civilizados, ainda que coexistam com autocracias ou Estados na sua pura existência[2] e não ainda no seu conceito ou racional, vez
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que se trata de um processo dialético e não de imposição mecânica. E isso se mostra até mesmo nas guerras ou em outros tipos de violência, que buscam justificação ética na expansão da democracia, portanto dos direitos fundamentais e na reivindicação dos próprios direitos fundamentais contra a fome no mundo. Esta era em que a justiça encontra sua maior expressão na universalização dos direitos fundamentais só pode ser compreendida segundo um vetor histórico, que a cultura ocidental empreende a partir da matriz greco-romana.
Na perspectiva de uma reflexão filosófica sobre sua realidade, o direito é uma totalidade ética que se desenvolve historicamente e fenomenologicamente como realização ética plena ou como último momento do processo ético, vale dizer, como realização da liberdade na sua forma subjetivada e objetivada, direito norma e direito do sujeito, a partir do homem na forma do cidadão grego, do homem livre na forma da pessoa de direito em Roma até o indivíduo livre ou o sujeito de direito universal na Revolução, a partir da qual todos são livres, vale dizer, cidadãos ou sujeitos do poder e pessoas ou sujeitos de direito. (...)
O direito é todo o processo no qual está também o antidireito ou o direito arbitrário do Estado autocrático como momento que não pode ser tomado abstrata ou separadamente, mas momento a ser superado no direito racionalmente posto como distribuição universal da liberdade no Estado de Direito. Mesmo nos Estados autocráticos no mundo contemporâneo, signatários da carta das Nações Unidas, há a declaração de direitos, o que é já direito existente, embora não na sua forma de plena efetividade. Desse modo, a declaração de direitos no mundo contemporâneo realiza processualmente a sua racionalidade, como saber e fruição universal e igualitária da liberdade na forma dos direitos fundamentais. Não há, portanto, que excluir do direito a sua manifestação na forma arbitrária
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e até mesmo criadora de privilégios, pois que pertence, como mero momento, ao processo de sua própria superação, a dar-se no plano do Estado Democrático de Direito, em que o saber da liberdade e o agir livre formam uma unidade.
O Estado Democrático de Direito é, assim, entendido como o ponto de chegada de todo um processo histórico do ethos ocidental, que se desenvolve segundo uma dialética entre o poder e a liberdade.
(...)
A consciência filosófica grega desenvolveu o conceito moral de justiça; com efeito, a justiça é akrotés e torna possível o trânsito do indivíduo para o cidadão, que, por sua vez, torna possível realizar a eudaimonia, ou a perfeição segundo o ideal de formação do homem grego no período da sophia científica. O Estado como se percebe em Platão (principalmente em As Leis e A República) e em Aristóteles (Ética a Nicômaco)[3] tem uma finalidade ética stricto sensu: formar ou educar eticamente o cidadão para ser útil à comunidade.
A consciência jurídica romana formulou o conceito de justiça jurídica e, ao identificar direito e justiça, pôs o político a serviço da pessoa de direito, concebendo o direito como o maximum ético. Para os gregos a justiça é assunto da ética, ao passo que para os romanos (o que Kelsen parece não ter percebido) é tema do direito; o conceito de justiça é jurídico.
O ético que se desenvolve a partir das virtudes morais postas e definidas por Sócrates, Platão e Aristóteles, segundo o ideal de formação do homem grego e que constitui a base da cultura greco- cristã, o direito ou justiça, entendido como forma de conservação da sociedade na medida em que faz surgir a pessoa de direito, incorporada na cultura romano-cristã, encontra seu momento de efetivação
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na declaração universal de direitos do sujeito de direito universal. A justiça é todo esse processo do real ético, que tem no direito, após superada a cisão provocada pelo deslocamento da sua essência para o ideal do direito natural, o seu conceito ou a sua verdade, e no Estado de Direito, cuja essência e substância, forma e matéria, é a declaração de direitos, a sua epifania ou plena explicitação.
A tentativa de Hegel de recuperar o Estado grego por certo não poderia compor a nova realidade que surgia, um Estado ético ou racional, vez que a vertente histórica fundamental não era o político, mas o direito, portanto o ético na sua (continua...)

(...) O jurídico é, assim, o último momento do processo ético que mostra a sua verdade através do processo histórico-cultural do Ocidente. O jurídico, portanto, assume o ético (moral) e o político, vez que o ético ou moral continua como virtude na formação da pessoa segundo a região ética a que pertence, o político permanece na forma do consenso de uma vontade universal, mas no seu momento puramente formal, no sentido da formação da decisão consensual, que, porém, só encontra sentido se realiza valores de cumeada da cultura e universalmente reconhecidos, ou racionalmente reconhecidos, como direitos fundamentais.
(...) O princípio ético dos estóicos e consagrado por Santo Tomás de Aquino, malum vitandum bonum faciendum est (o mal deve ser evitado e o bem deve ser feito), só permite a sua plena compreensão na tensão polar e dialética dos valores (o bem e o mal), mas
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num momento de verdade do fenômeno ético. No direito, como fenômeno histórico-cultural, não há como separar os dois aspectos desse fenômeno, que só se compreende na sua unidade, valor e norma. A justiça não é, pois, um valor apenas intra-sistemático do direito positivo, no sentido de ser determinado pela norma, nem um valor metajurídico-positivo, no sentido de preceder a norma, mas um valor que é ao mesmo tempo normativo e uma norma que é ao mesmo tempo axiogênica.

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(...) não é livre quem age ou se movimenta livremente sem saber que o é (...)

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(...) A pessoa, nesse contexto do início do Título V, do Livro I do Digesto, são todos os seres humanos;[4] a todos foram, são ou poderão ser atribuídos direitos; mesmo aos escravos, pois na concepção realista do romano não há escravo por natureza no sentido próprio, mas em razão do direito criado pelo homem, seja o ius civile ou o ius gentium, neste caso os vencidos de guerra. À base do conceito de pessoa está o de liberdade , uma faculdade natural de todos os seres humanos, mas que pode ser restringida pela força ou pelo direito.67 Pode ser restringida, mas não desaparece enquanto estrutura ôntica do ser humano. Daí por que um direito fundado na humanitas reconhecer o mérito (dignitas) de pessoa também no escravo, que podia recorrer ao Prefectum contra maus-tratos, físicos ou morais, contra a prostituição.[5] O conceito de pessoa passa para o campo moral e depois para o religioso e teológico. Sua fonte é o direito romano, não ainda a cristã, de dignidade da pessoa humana (por conseguinte, “humana” é expressão cristã, em razão de seu Deus pessoal), que se desenvolve posteriormente no cristianismo, em razão de um direito universalmente reconhecido a todos os seres humanos: o direito à salvação, decorrente da igualdade de todos, por serem filhos de Deus, segundo Santo Agostinho.
(...) O texto estabelece as normas sobre as pessoas. O ius é tomado então no sentido dessa
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regulação. (...) Se o direito como normas se estabelece por causa das pessoas, as normas que regulam sua situação (ius no sentido objetivo) conferem-lhes status de titulares de direitos (direitos subjetivos), na medida em que cada pessoa ingressa empiricamente na situação regulada.
O conceito de pessoa é um passo gigantesco na formação do direito e da cultura ocidental, com relação ao cidadão grego imerso na função inconsciente de elemento da polis. É no conceito romano de pessoa que se concentra e se mostra a liberdade e não na imprecisa autonomia do cidadão grego, pois faltam a este a individualidade e o direito.
(...)
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(...)
a) Cícero
Um grande passo para a concepção de justiça como critério formal de tratamento igual de todos, perante a lei, foi dado pelas novas condições de vida do Império Romano, cuja expressão filosófica mais própria apareceu no estoicismo.
Hegel descreve na Fenomenologia do Espírito a dissolução do “mundo ético” grego, que concentrava a essência da comunidade em sua “imediatidade”, e o aparecimento do “estado de direito” romano. O Estado, após a destruição da polis, não é mais a comunidade ética em que o indivíduo aparece integrado como cidadão. Os indivíduos se mostram diante do Estado universal abstrato como essências pontuais, isolados na vastidão do Império Romano. Como indivíduos que reivindicam a essência ética, são todos iguais, mas iguais perante a lei, sem qualquer vinculação orgânica, na opinião de Hegel. Trata-se de uma igualdade abstrata que resultará numa liberdade individual desordenada, pois que o concreto revela como livre a posse, cuja forma jurídica é a propriedade, em que o “eu” livre – tido como livre somente porque não está no outro -, mas solipcista (porque reivindica toda a essência), passa a ser um “meu”.
Essa multidão pontual, contudo, não pode manter em si mesma a essência ética, pois que, como individualismo desarticulado e caótico, acabará por alienar a sua essência num indivíduo que manifesta a sua unidade, o Imperador, senhor do mundo.
Não é de admirar, pois, que a ética estoicista consista na inserção na ordem cósmica e na resignação com sua lei universal, que é a
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expressão da lei universal, com relação à qual a razão individual é apenas o local da sua aparição. A lei universal ou a ordem é um destino inexorável que os bons “seguem voluntariamente, incluindo-se harmonicamente no acontecer histórico”, numa espécie de determinismo teleológico.5
O logos de Heráclito é, para os estóicos, um critério de ação virtuosa. “É preciso seguir o universal”, isto é, a razão (logos V), pois que esta é o universal, e não viver como muitos, como se tivessem um pensamento só para si.[6] Entretanto, somente “se respiramos o logos divino, tornamo-nos seres dotados de razão”.[7] Essa apoteose do logos (ou da razão), que não é somente uma faculdade do ser humano, mas a ordem que penetra toda a realidade, é a fonte inspiradora do estoicismo.
O formalismo estóico não tem, de outro lado, um critério do verdadeiro ou do bom[8] a não ser no pensamento abstrato, sem conteúdo: se não posso ser livre concretamente, posso no pensamento; e isso basta. Por isso a liberdade da consciência de si “é indiferente com relação ao ser natural existente”. É apenas liberdade no pensamento, conceito abstrato de liberdade e não liberdade viva, razão pela qual a sua atividade própria é de “ser livre no trono ou nas correntes, no interior de toda dependência quanto à sua existência singular”.[9] Parece, contudo, ter propiciado ao direito romano uma definição mais lúcida da escravidão, negando-a como algo natural.[10]
Essa liberdade abstrata que aparece nos indivíduos torna-os consequentemente iguais também abstratamente, como pessoas do
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direito, ou seja, como iguais perante a lei. A justiça consistirá numa fórmula abstrata de a lei tratar a todos igualmente. De outro lado, justo é inserir-se na ordem, ou submeter-se à lei natural ou à reta razão (recta ratio), isto é, à razão “concorde com a natureza, difundida em todos os homens, constante e eterna”.[11] Essa lei natural é a vontade de Deus ou razão de Deus ordinem naturalem conservare iubens, pertubari vetans.[12] A vontade de Deus do estoicismo é a de um deus impessoal, que não coincide com o demiurgo platônico que “ordena o mundo segundo as idéias que lhe estão supra-ordenadas”, nem a do Deus pessoal do cristianismo que domina suas criaturas de modo absoluto. O Deus do estoicismo é um princípio que anima a matéria como o logos de Heráclito. Deus é a causa intrínseca e imanente do universo, ou seja, a razão que forma também a essência da alma humana, pois o homem também pertence à ordem cósmica que se rege por princípios necessários. Com isso desaparece o dualismo grego nomos – physis, ou do dever ser e do ser. A razão como princípio igualitário põe fim às diferenças.
No estoicismo, o natural, como universal funde-se totalmente no racional, como puro pensar abstrato. Esta concepção permitirá a um jurista de grande conhecimento do direito, como Ulpiano, incluir também os animais na definição do direito natural (ius naturale est quod natura omnia animalia docuit).[13]
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Vê-se que o período do Império, por influência do estoicismo que considera igual todo ser humano, por ser cada um uma centelha da razão cósmica, propicia uma concepção do direito natural diversa da do período mais primitivo do direito romano, quando o direito natural se confundia com o próprio costume (o que ocorreu também na Grécia), considerado como uma comunidade ética que integrava o indivíduo e a família. Aí, distinguia-se não o direito positivo de um direito transcendente, mas o direito escrito do não escrito. Essa naturalidade do costume, porém, gerou inclusive uma concepção paralela do direito natural, diversa da de Ulpiano, a de Gaio. A busca do justo para além da lei e do costume tem sua origem em Sócrates, o descobridor da consciência moral, que evolui para a consciência jurídica romana, quando o justo opera a unidade da razão e da vontade de elaboração da lei.
Para entender o pensamento de Cícero, podemos dividir a atividade prática do romano em duas espécies principais: a jurídica e a política. A serviço dessa atividade, estavam a filosofia, a ética, a literatura e a oratória, (continua até p. 155)
(não tem p. 156-157)
(continua até p. 172)

P. 173
ULPIANO







[1] (...) entende-se que a cultura cristã, obviamente, não é a que influenciou o direito clássico, mas o assumiu, coo assumiu, na filosofia, as grandes contribuições do estoicismo, já dominante e que se tornou o habitat intelectual do nascimento e do desenvolvimento (p. 2) do cristianismo. Mesmo o direito canônico, que se positivava sistematicamente a partir do século IX, engloba, na sua totalidade, o direito romano. PRODI, Paolo. Uma história da justiça. Tradução de Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 63 e segs.
[2] Estado na sua mera existência, para usar uma terminologia de Hegel, é o que não alcançou sua plena realização ética, que é o Estado no seu conceito, (p. 4) ou seja, na sua expressão maior de racionalidade, aqui entendido como sendo o Estado Democrático de Direito. (...)
[3] Em Aristóteles a justiça não é tratada como um conceito jurídico tecnicamente, separado do conceito moral. A justiça é um bem subjetivo, enquanto é virtude (qualidade) e um bem objetivo enquanto medida (quantidade), mas em ambos os casos o direito não aparece separado da moral (V. Ética a Nicômaco, 1135a)
[4] GAIO, D., 1, 5, 3
[5] ULPIANO. D., I, 5, 6, 2 e D., I, 12, 1, 8.
[6] HERAKLIT. Fragmente. Tradução alemã bilíngüe de Bruno Snell. München: Helmeran, 1979, B2. .
[7] Ibid., A16.
[8] HEGEL, G. W. F. Phänomenologie des Geistes. Hamburg: Felix Meiner, 1952, p. 154.
[9] Ibid.,p. 153.
[10] “Servitus autem est constitutio juris gentium, qua quis dominio alieno contra naturam subiicitur.” Institutas. I, 3, 2 e segs. A escravidão tem origem na guerra, principalmente, e por nascimento (filho de escravo), pois a de origem civil desaparecera, essencialmente, já no período clássico. Cf. BONFANTE, Instituições de derecho romano, p. 43.
[11] CÍCERO, M. T. Da República. Tradução Cisneiros. São Paulo: Abril, 1973, II, 33.
[12] V. AGOSTINHO, Santo. Contra Faustum, CIII, 27, apud SORIA, Carlos. In- troducción a la q. 93. In: AQUINO, Santo Tomás de. Summa theologica. Madri: BAC, 1956, p. 77.
[13] ULPIANO. D., I, 1, 3.

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